INTRODUÇÃO


Tudo começou lá pelos idos de 1989, onde eu lecionava matemática em uma escola de 2° grau. Era uma sexta-feira e os dois últimos períodos da noite sempre eram de matemática, física ou português, pois se colocassem outras disciplinas não ficava ninguém. Numa das aulas, em um intervalo, um aluno meu indagou-me sobre o que eu sabia de patentes. Prontamente respondi o que se aprendia na engenharia: o básico do assunto. O aluno me disse: “serve”. Ele trabalhava como vendedor em uma empresa do ramo, captando clientes que necessitassem do serviço em marcas e patentes. Convidou-me para conhecer a empresa e conversando com seu titular acabei aceitando o trabalho de redator em patentes. Gostei do assunto e dediquei-me: cursos, legislação, técnicas de redação e outras necessidades. Quando terminei e engenharia, eu e minha futura esposa, resolvemos montar uma empresa especializada no assunto. Ela ficaria com o administrativo (para o bem de todos, pois eu não sei nem pedir cheque em banco) e eu ficaria com a parte de patentes. Depois de duas décadas nesse trabalho e milhares de patentes redigidas, veio a ideia de selecionar as mais originais e publicá-las numa espécie de anedotário. O objetivo é mostrar a grande criatividade do brasileiro, que não deixa desejar a nenhum outro povo, além de divulgar o trabalho de marcas e patentes de um modo menos sisudo. Todas as patentes que foram citadas nesses contos já estão em domínio público. Os nomes dos inventores foram mudados para garantir privacidade e o meu pescoço. Minha esposa não quis aparecer e me ameaçou com direitos autorais caso divulgasse seu nome sem autorização.
Espero que apreciem essas pequenas histórias.

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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Marília

V

Marília.

Essa noite tive um sonho de sonhador (plágio do Raulzito, mas creio que o Maluco Beleza não iria se importar). Pois bem, em meu sonho acordei e fiquei uns instantes observando se estava vivo ou morto. Pode parecer brincadeira, mas é difícil decidir às vezes sobre essas questões. Por alguma razão que agora me foge à consciência, decidi que havia morrido. Bem, como estava morto mesmo, resolvi olhar a minha volta para ver onde eu estava, pois não conseguia distinguir muito além do meu nariz, devido à névoa que se estendia em todas as direções. Enquanto, ato contínuo, forçava o olhar, começou a clarear a visão e pude perceber com nitidez que me encontrava em um anfiteatro lotado com pessoas que eu não conhecia. Havia gente de todo tipo: homens, mulheres, crianças, velhos e velhas, doentes e deficientes, uns estavam bem estropiados, outros nem tanto, mas, de qualquer maneira, quase não havia cadeiras vazias para serem ocupadas. Enquanto olhava ao redor para ver se reconhecia alguém, percebi bem em frente um senhor muito alinhado, terno, gravata, pasta e um celular à mão, apurei o ouvido e pude compreender o que ele falava ao telefone. Com que falava não sabia, mas estava bem alterado. Era mais ou menos assim parte de sua conversa:
― Isso não podia ter acontecido comigo! Eu não devia estar aqui! Tenho muitas coisas para resolver!
Alguém no telefone falava com ele, pois esse homem ficava quieto por segundos com o ouvido colado ao celular.
― Não aceito isso! Vou embora daqui! Não adianta! ― disse o engravatado senhor.
Muito agitado, o homem levantou-se do lugar onde estava, seguiu para o corredor que havia perto de mim, desceu o anfiteatro e saiu por entre as cortinas laterais.
Fiquei curioso por saber o que de tão grave havia acontecido com ele para sair dali da maneira como saiu. Enquanto divagava sobre questões que não me diziam respeito, uma moça veio conduzindo um cego até um lugar vago perto de mim. Esse homem cego usava óculos redondos bem escuros, uma bengala pendurada no braço esquerdo e a mão direita apoiada no ombro da moça que o conduzia escada acima. Gentilmente a moça dirigiu-me a palavra:
― Ele pode sentar-se nesse lugar? ― perguntou a moça apontando para uma cadeira vaga ao meu lado.
― Claro que pode ― respondi prontamente.
Levantei-me e deixei o homem cego acomodar-se confortavelmente na cadeira. A moça agradeceu e retirou-se, voltando para o lugar de onde havia vindo.
Alguns segundos se passaram. Os presentes começaram a se agitar nas cadeiras, o burburinho aumentava quanto uma mulher muito bem vestida entrou no palco. Com um largo sorriso ela se apresentou:
― Meu nome é Marília! Sejam todos muito bem-vindos.
Retribuímos em coro quase uníssono ao comprimento.
― Estou aqui para ajudá-los no passamento ― disse Marília. ― É um momento um tanto delicado, mas que surge para todos.
Essas palavras bateram forte nos presentes. Houve um alvoroço geral que foi silenciando-se aos poucos ante aos pedidos de nossa anfitriã. Recebi essa informação com uma inesperada tranqüilidade, pois, como já mencionara, tinha decidido que havia morrido.
Um instante mais de silêncio e era possível ouvir lamúrias de todas as partes.
― Eu era tão jovem! ― exclamou um rapaz, logo abaixo do homem cego.
― Mas, mas, como isso pode acontecer? ― disse uma mulher coberta de faixas.
― Deixei muitos assuntos inacabados! ― bradou um homem velho, mas que me pareceu ser muito importante.
Marília novamente acalmou a todos com seu sorriso tranquilizador e com mãos postas à frente.
― Meus irmãos! ― disse ela. ― O que passou, passou. O que se deixou por fazer ficou; mas o tempo é nosso aliado, e não podemos nos desesperar pelo que deixamos para trás. As coisas que não foram resolvidas ainda podem ser terminadas.
Com mais algumas palavras de conforto, Marília aquietou o coração de todos os presentes.
Um por um, nossa anfitriã nos chamou. Ainda não sei como ela sabia o nome de todos os presentes, mas quando pude perceber, não errava nenhum. Estendia a mão e chamava a cada um.
Cada um que era chamado descia até o palco. Marília conversava com ele por instantes e indicava uma direção a ser tomada. Mesmo aqueles que ainda choravam, ao ficarem perto dela aquietavam seus corações, e com um sorriso seguiam calmamente a direção apontada. O cego ao ser chamado, infelizmente não lembro do nome dele, pegou sua bengala e foi tateando serenamente até Marília. Subiu no palco sorrindo, juntou as mãos e fez uma mesura, retribuída pela anfitriã. Saiu pela esquerda. Um senhor foi chamado e não quis ir ao palco. Recusou-se peremptoriamente a sair do lugar onde estava. Nossa anfitriã apenas disse:
― Podes ficar o tempo que quiser. Não há pressa meu amigo.
E assim foi esvaziando o anfiteatro, ficando apenas algumas pessoas que se recusaram a partir. Eu fiquei prestando atenção em tudo que ocorria a minha volta, cada um que era chamado, a maneira como se comportava, a direção que tomava, como partia; esperando a minha vez e ser chamado. Foi quando ela olhou diretamente para mim e me chamou pelo meu nome completo. Levantei-me, desci os degraus que levavam ao palco, subi e como se estivesse a me despedir das coisas, cheguei perto de Marília. Ela sorriu para mim, eu retribuí o sorriso. Ela chegou-se perto de mim e disse ao meu ouvido:
― Acorda!
Abri meus olhos, olhei ao redor e reconheci o meu quarto. Fiquei muito feliz por estar de volta. Senti em meu coração uma paz muito intensa. Olhei o relógio: seis horas da manhã. Levantei-me e fui saudar o sol.

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