INTRODUÇÃO


Tudo começou lá pelos idos de 1989, onde eu lecionava matemática em uma escola de 2° grau. Era uma sexta-feira e os dois últimos períodos da noite sempre eram de matemática, física ou português, pois se colocassem outras disciplinas não ficava ninguém. Numa das aulas, em um intervalo, um aluno meu indagou-me sobre o que eu sabia de patentes. Prontamente respondi o que se aprendia na engenharia: o básico do assunto. O aluno me disse: “serve”. Ele trabalhava como vendedor em uma empresa do ramo, captando clientes que necessitassem do serviço em marcas e patentes. Convidou-me para conhecer a empresa e conversando com seu titular acabei aceitando o trabalho de redator em patentes. Gostei do assunto e dediquei-me: cursos, legislação, técnicas de redação e outras necessidades. Quando terminei e engenharia, eu e minha futura esposa, resolvemos montar uma empresa especializada no assunto. Ela ficaria com o administrativo (para o bem de todos, pois eu não sei nem pedir cheque em banco) e eu ficaria com a parte de patentes. Depois de duas décadas nesse trabalho e milhares de patentes redigidas, veio a ideia de selecionar as mais originais e publicá-las numa espécie de anedotário. O objetivo é mostrar a grande criatividade do brasileiro, que não deixa desejar a nenhum outro povo, além de divulgar o trabalho de marcas e patentes de um modo menos sisudo. Todas as patentes que foram citadas nesses contos já estão em domínio público. Os nomes dos inventores foram mudados para garantir privacidade e o meu pescoço. Minha esposa não quis aparecer e me ameaçou com direitos autorais caso divulgasse seu nome sem autorização.
Espero que apreciem essas pequenas histórias.

Escolha o assunto ao lado, em "Marcadores" e, divirta-se!

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Como Escrever Bem

Escrever bem é uma arte. Quanto a isso ninguém pode duvidar. No entanto, podemos seguir certas dicas que tornem essa operação mais fácil. Foi exatamente pensando nisso que me passou pela cabeça sugerir cinco dicas para que se possa escrever com arte. Infelizmente, eu mesmo não as sigo, por isso não escrevo muito bem, apenas tento alguns acordes com as palavras. Mas, vamos às dicas:

  • Primeira: Deve-se escrever sobre o que não se conhece (o criador de Tarzan nunca foi à África). Por isso resolvi mandar meu currículo para diversas emissoras para ser comentarista esportivo, particularmente do futebol.

Caro leitor, você não tem noção de como sou ruim em futebol. Perna de pau, manco mesmo. Não é brincadeira. Nunca gostei de futebol (putz, mas não sou “viado”) apenas detesto esse esporte. Fiquei sabendo pela minha mãe que meu pai me deu uma bola quando eu era bem pequeno. A velha disse que olhei para a bola e saí correndo, para o outro lado. O pai olhou para cima e teria comentado:

― Qualé! Ta de sacanagem?

Para dar um basta nessa situação, comecei a estudar as regras do jogo. Afinal, quero ser comentarista. No entanto, são muito confusas. Os jogadores têm posições definidas, mas para quê? Se eles não ficam parados. Vejamos: um jogador é chamado de atacante. Bom. Tecnicamente ele ataca o time adversário para fazer um gol. Aí, vendo uma partida de futebol, vi um goleiro de um time sul-americano (não tenho e menor chance de lembrar o nome) sair correndo do seu gol, passar por todo o campo é mandar uma bola na rede adversária. Como? Ele é goleiro-atacante? Se ele é goleiro ele tem que defender. É muito complicado.

O cara é lateral esquerda. Ele deveria ficar lá. Na lateral esquerda. Mas não fica. O jogador sai dessa posição, atravessa para o outro lado, passa pelo meio do campo e ocupa a zaga. Ah!? Quem? Zaga!

“O zagueiro tem como função marcar os atacantes”. Ta no livro. Piorou. Ele tem que marcar o goleiro adversário ou o seu próprio goleiro?

Fui falar com meu pai. Ele me disse:

― O beque é a defesa central. Ocupa a posição entre a linha média e o gol ― disse o velho com muita experiência.

― Quem é esse beque?

― Beque é o zagueiro.

― Mas que confusão.

Não me dei por vencido. Passei uma tarde inteira zapeando os canais de esporte na TV.

― Credo! O impedimento:

“No futebol, o jogador que recebe o passe não pode estar à frente do penúltimo adversário (incluindo o goleiro) no momento em que este passe sai do pé do companheiro”.

― Mas se o goleiro que também é atacante estiver no outro lado do campo, o lateral esquerda que ocupa a zaga contrária pode marcar o gol sem estar impedido pelo seu goleiro?????? ― SOCORRO!

Tenho chance?

  • Segunda: Ninguém sabe escrever português corretamente. O que a gente consegue é não errar tanto. Por exemplo: não dá para escrever çapato. Aí não tem defesa.
Num dia desses, entre uma caipirinha e outra, meu cunhado, homem de muita inteligência (é engenheiro também) propôs que as palavras devessem ser escritas de acordo com o som que se escuta ao pronunciá-las. Sabe que isso tem muita lógica, pois eliminaria às exceções. Começamos com essa palavra mesmo: exceção. Para que “xc”. Repitam a palavra em voz alta ouçam o som: ouviram. Pois é. Em primeiro lugar, se elimina o “ç”. Depois troca-se o “xc” por “c”, pois ”xc” tem som de “c”. Ninguém pronuncia o “x”. Daí, em vez de “exceção” fica: “ecessão”.

Querem ver outra situação: Chapéu, Xícara, chave. Para que o “ch”. Todas essas palavras têm som de “x”. Elimina-se o “ch” e tudo fica simples. Xave, xapéu, xuxu, Xuxa, enxente, xupeta. Aí, além dessa vantagem, ninguém mais vai escrever errado. Querem ver só: tem ou não tem que pensar para saber como se escreve enchente ou enxente. O som é o mesmo.

Outro encontro complicado é “sc”. Nascer, nascente, esclarescimento. Viram: está errado e nem se deram conta. Elimina-se o “sc”. Fica somente o “s”. Esclaresimento, nasente, naser.

Tigela, tijela, jibóia, gibóia. E aí como é que fica. Põe tudo com o mesmo som: tijela, jibóia, jirafa, jirau, jiló, jarra, jege, etc.

Viram que eu escrevi jege no lugar de jegue. Isso faz parte da minha reforma ortográfica sobre o som das palavras. Ninguém pronuncia o “u” de, por exemplo, “que”. Assim, de acordo com essa linha temos que escrever dessa maneira:

- qe;

-qeijo;

- portugês;

- muinto. Já repararam que a gente pronuncia o “n”, mas não escreve;

- companhia fica: compania;

- kaza, kazamento etc. Fica mais correto, pois o “c” tem som de “k” e o “s” tem som de “z”.


A crase.

Para que crase. É o encontro da preposição mais o artigo. Heim! O que é isso? Vou dar um exemplo:

Pedrinho não gosta de ir à aula.

Pedrinho não gosta de ir a aula.

Faz alguma diferença se o cara não estuda mesmo.



E aquela estória da Bahia.




Ele foi à Bahia.

Ele foi a Bahia.

Qualé. Não sacaneia.

Eu, particularmente, tenho um apresso ao avesso pelos porquês. Em qualquer gramática tem sempre uma observação: “O uso dos porquês e um assunto muito discutido e traz muitas dúvidas”. Vejam vocês se isso é coisa que se diga. Sem nem começar o assunto, já menciona que é duvidoso.

Vejamos:

Por que, porque, por que e por quê.

Sacanagem. Consegue-se perceber alguma diferença entre eles ao se dizer uma frase. O som é o mesmo. Exemplifico:

Por que você não vai ao cinema?

Porque você não vai ao cinema?

As outras duas formas não existem.

― Por que você está conversando?

― O porquê de eu estar conversando é porque não consigo me concentrar no por quê. Nem sei se isso está escrito de modo correto.

Assim, seria bem melhor apenas uma das formas. Penso que seria porque. Claro que sem nenhum assento.

  • Terceira: Mantenha coerência no escrito, mas nunca diga qualquer coisa de modo direto. Melhor: não diga coisa com coisa. Para parecer inteligente tem que dar uma enrolada.

Querem ver só: Aula Magna de um certo presidente de Banco Central:

“A volatilidade dos ativos em aplicações de alto risco, põe em cheque a estabilidade que deveria ser gerada em situações, onde o valor agregado a esses mesmos ativos não sofra uma diferença muito grande entre o dinheiro especulativo e o que serve de base para o lastro em moeda corrente”.

Lindo! Estou todo arrepiado! O cara lê um negócio desses e comenta: “Putz, ainda bem que estamos em boas mãos”. “O cara sabe o que está dizendo”.

Outro exemplo bacana são os discursos políticos.

Eu acompanho a política desde a campanha das Diretas Já. Como eu era muito ingênuo prestava atenção nos discursos políticos. Ficava vidrado nas falas do Brizola, Tancredo, Fernando Henrique, Mário Covas etc. Também tinha um sindicalista barbudo que gritava que nem louco (uma cigana disse que ele tinha muito futuro se não estudasse nada).

Voltando aos discursos, eu me lembro que ficava atento ao que os políticos diziam. Quando davam uma entrevista eu só faltava entrar dentro da TV. Dou um exemplo:

“Evidentemente, que as perdas nacionais para o capital estrangeiro são decorrentes da aplicação inadequada das políticas macroeconômicas, implementadas à revelia das massas que servem apenas para serem conduzidas a uma situação insustentável, onde a concentração de renda atingiu os mais altos índices em toda a história desse país”.

Você escuta uma vez e fica encantado.

― “Esse é o cara. Vai ter o meu voto” ― você pensa.

Escuta duas, três e percebe que o nheco-nheco não muda. O cara não diz nada com nada. Passam vinte e cinco anos e a lorota é a mesma.

Tem um partido político que é mestre em discurso enrolado. Os caras devem ter editado uma Cartilha de Discurso. Nunca vi coisa igual.

“A capilarizão dos recursos para a aplicação dos planos de metas deve ser conseguida sem o espraiamento do dinheiro para as obras essenciais”.

É ou não é de chorar. Eta palavrório bonito!

Por isso, essa dica é tão importante. Tem que se usar palavras estranhas, escrever de modo genérico e totalmente indireto.

  • Quarta: Tem que escrever sobre desgraça. Ninguém ganha um prêmio internacional comentando o desabrochar das Edelweiss nos altos do Mont Blanc.

Essa dica me faz lembrar da minha avó. Ela era uma velhinha muito viajada. Nunca ficava muito tempo num mesmo lugar. Morreu com 94 anos num dia frio de matar. Enterramos a velha e corremos para perto do fogão à lenha, pois não havia condições de ficar no cemitério. O minuano estava de lascar. No dia seguinte voltei lá para verificar se ela não tinha fugido. Sabe com é...

A velha era genial. Se havia alguma tragédia na TV, acidente na rua, tiroteio, estupro, enchente etc., qualquer desgraça mesmo, a velha ia conferir. Depois, botava as mãos na cabeça e dizia:

― Misericórdia! Pobre dos “meserável”!

Acho que isso manteve-a lúcida e boa de prosa até o fim da vida. Pois isso dessa dica. Tem que falar da desgraça. A televisão sabe muito bem disso, principalmente os telejornais. Eta desgraceira. Quando a gente se dá conta está escorrendo sangue da TV.

Os romanos estavam certos. Se fossem vendidos ingressos para ver tragédias, podemos ter certeza de que os estádios estariam lotados.

  • Quinta: Tem que ser politicamente correto.

Essa dica é muito importante, pois evita do escritor entrar em assuntos polêmicos.

Dou exemplos:

Um amigo meu é filho de pai francês. O pai dele foi designado para trabalhar na Argélia, que era colônia francesa até sua independência em 1962. Pois bem, lá ele conheceu uma argelina linda, casou-se com ela. Depois de uns 10 anos, mudou-se com a família para o Brasil e teve um filho aqui. Assim, meu amigo é brasileiro, branco e de olhos claros, mas é afro-descendente (a Argélia fica na África). Por isso resolveu entrar com a papelada para conseguir uma vaga na cota das universidades. Deve conseguir.

Olha como é bacana: Montar o ONG e sair por aí na defesa dos direitos inalienáveis dos ratinhos brancos usados em laboratório. Isso da até manchete. Se duvidar ganha uma verba governamental e cartão coorporativo, tudo nas costas dos ratos.

Vamos escolher um dia. Digamos 4 de outubro. Monta-se uma passeata, tranca todo o trânsito. Tem que ser numa sexta-feira para atrapalhar bastante. Reúne a multidão e se desloca pela avenida mais entulhada da cidade (em POA penso que seja a Farrapos) até o Palácio do Governo. O povaréu reunido gritando para a rataiada. Chegando lá, entrega-se para o governador ou governadora (dependendo do seu Estado, todos eles estão críticos) um manifesto em favor dos ratos. O representante do poder executivo assina o manifesto e ganha de presente uma gaiola com os bichinhos. Eles são tão bonitinhos que certamente os políticos vão se identificar com eles. Sabe, pinta uma coisa de irmandade.

O manifesto tem que ser redigido de acordo com as novas regras de portugês, explicadas na segunda dica.

A Divisória

Quem curte um bom chimarrão sabe muito bem que o mate chega a ser uma profissão de fé, pois o gaúcho pode sair do Rio Grande, mas o Rio Grande não sai do gaúcho.


Para preparar um bom amargo não precisa ser escolado,

Pode ser grosso, fresco ou bem educado;

Mas é necessária a ciência da ceva e do fazer,

Uma boa cuia parceira da bomba tem que ter,


A erva-mate bem verdinha é essencial,

Pura folha, moída grossa ou tradicional,

A água no ponto, quando a chaleira chia;

Nem muito quente nem muito fria,


Sorver o mate com gosto e calma

E um prazer que aconchega a alma.

E quando ronca a cuia, passar além

Para o amigo apreciar também.




Pois bem, depois de anunciado o sujeito e como quem não quer nada, foi logo perguntando de repente:

— Vivente! É por aqui eu se faz patente?

Olhei para o homem; chapéu tapeado na testa, barbicacho no queixo, bota de cano alto e bombacha folgada, mas bem feita.

Respondi logo, pra não fazer desfeita.

— É sim, certamente.

Juvêncio puxou da algibeira uma cuia com bomba e tudo, prontamente.

— Um momento — disse, disposto a mostrar o tal invento.

Servi ao homem um bom mate a contendo.

— Exatamente isso, uma apetrecho novo eu vim lhe mostrar.

A cuia era boa, cortada no ponto, seio moreno bonito de apreciar.

— Não vejo nada de especial — disse ao inventor novato.

Ele pegou uma peça plástica que da cuia imitava o formato.

— Calma doutor, isso vai dentro do porongo, bem encaixado.

A peça era tosca, mas dividia ao meio a erva e a água do outro lado.

— E esses furinhos cá embaixo? — assim com a mão mostrando.

Como uma peneira encostada no fundo da cuia, fui logo apontando.

— Por aí passa somente a água e não desbarranca a erva — explicou.

Analisando mais um pouco o que o inventor revelou.

— Mas, depois de umas cuiadas sobra apenas erva lavada?

Parecia boa a pergunta, mas Juvêncio já tinha a resposta pensada.

— Depois de encher alguns mates, pode tirar a divisória.
Juvêncio pegou a cuia e puxou fora a peça sem muita história.

— Se é só para armar o mate, a peneira tem necessidade?

O inventor coçou a barba mostrando certa ansiedade.

— Não tem problema doutor, os furinhos podemos tirar — disse.

Com isso, a invenção perdia a finalidade e o interesse.

— Ponderei com ele e perguntei: — você quer mesmo depositar?

Juvêncio não gostou e ameaçou se retirar.

— Não fique chateado, estou apenas perguntando.

O inventor levantou-se, botou o chapéu e foi se retirando.

— Não é nada não, pensei que tinha feito uma grande invenção.

Nos despedimos com um bom aperto de mão.

— Volte sempre para uma prosa, boa e franca como se deve ter.

Juvêncio, homem simples, mas verdadeiro, voltou-se e disse: — vou fazer.


O leitor tem que desculpar a rima pobre,

Pois o narrador não é poeta nobre.

É apenas um simples redator

Que teima em ser escritor.

A Vaca


Tinha acabado de me sentar à frente do computador, quando fui avisado de uma visita marcada para mim, à tarde. Era numa cidade perto de Porto Alegre. Mais ou menos uns oitenta quilômetros. Coisa de pouco mais de uma hora de viagem.

Depois da sesta é claro, coloquei-me na estrada. Logo estava chegando na cidadezinha e no endereço anotado. Sabia de antemão que se tratava de um reboque. Mas o inventor não forneceu mais nenhuma informação. Sabem como é: segredo é segredo. E todo o invento vai mudar o mundo.

O lugar era bem bonito. Aberto, um potreiro comprido, um capão de mato ao fundo, e tinha um pavilhão, desses pré-fabricados, onde estaria o invento.

— Boa tarde! — disse meu nome e o motivo porque estava ali, para um rapaz que veio me receber.

— Seu Antônio! — berrou o rapaz — é o homem da patente, me olhando de um jeito esquisito.

Isso é uma coisa que a gente tem que se acostumar nesse ramo: patente para a grande maioria da população é aquela casinha colocada sobre um buraco cavado no chão e que se usa para obrar, em lugares sem saneamento.

— Boa tarde doutor! — me cumprimentou seu Antônio.

— Boa tarde! — respondi o cumprimento com um forte aperto de mão. — Em que posso lhe ajudar?

— Sabe o que é uma vaca parada? — perguntou o homem para mim.

Uma das melhores coisas de ser criança é que a gente sabe tudo. Pode testar. Qualquer assunto. Elas dizem com a maior naturalidade: eu já sei. Ou pior: ficam te olhando com aqueles olhos lindos e você se sente o maior burro do mundo.

No entanto, para criança eu não sirvo mais, mas, mesmo assim, não quis escancarar para o seu Antônio que eu não tinha a menor idéia do que ele estava falando.

— Pois é! — comecei enrolando. — Acredito que o senhor não está se referindo ao gado parado por alguma razão qualquer.

— Sabe o que doutor — começou explicando o homem — nos rodeios, a piazada não pode participar da prova do laço. É muito perigoso para os guris tentarem laçar um bicho solto na mangueira. Por isso, existe o Torneio de Laço de Vaca Parada.

Olhei para o homem me sentindo de fato, o maior burro do mundo. Repeti para mim mesmo: “Torneio de Laço de Vaca Parada”. Fique com receio, mas tive de perguntar:

— O que isso tem a ver com a invenção seu Antônio? — perguntei.

— Vamos lá para o barracão que eu lhe mostro — respondeu.

Dentro do pavilhão, coberto por uma lona estava o invento. Era um chassi com duas rodinhas de um lado e do outro, daquelas de carrinho de mão. Uma armação de tubos subia desse chassi e era soldada formando uma espécie de triângulo. Um pezinho, desses de bicicleta, impedia que a vaca empinasse para frente. Assim, o “bicho” ficara parado em três pontos: as rodinhas e o pé de bicicleta. Mas não era tudo. Uma pele de vaca cobria a armação e na parte da frente tinha uma cabeça de vaca, empalhada. Estava ali, bem na minha frente, a tal da Vaca Parada. O que o pessoal fazia: deixava a Vaca Parada em um lugar na mangueira e a gurizada arremessava o laço de uma certa distância para laçar a cabeça de vaca que ficava: parada. Quem conseguisse o melhor arremesso, ganhava a prova.

Observando o invento, observei que tinha um engate para reboque.

— Para que serve isso? — perguntei.

— Um momentinho doutor que já lhe mostro.

Não demorou muito, seu Antônio saiu dos fundos do pavilhão com uma moto, dessas pequenas, com um cambão na mão. Ele tinha improvisado um engate na moto com o qual fixava o cambão. Na Vaca Parada tinha o engate, onde ele prendia o tal cambão. Assim, era possível rebocar a moto.

Seu Antônio era um homem baixinho e gordinho. Careca e usava um chapéu desses de beijar santo em parede. Sentado na sua moto, rebocando a vaca, que daí não era mais uma Vaca Parada, mas uma Vaca Rebocada, seu Antônio deu uma volta inteira na parte da frente do pavilhão, gritando e puxando a tal da vaca.

— E isso aí! — para que serve.

— E para o treinamento da segunda fase da gurizada doutor. Agora com a vaca andando.

Fiquei imaginando aquele homem entrando numa prova de rodeio, sentado na sua moto, rebocando a vaca e a gurizada atrás dele tentando laçar a cabeça do bicho. O povo todo gritando e fazendo a maior algazarra.

— E aí doutor? — indagou o homem — dá para fazer a patente?

— Mas é claro seu Antônio! — exclamei sorrindo — já tenho até o título: “Disposição construtiva em reboque”.

* * *

A Invenção Perfeita

Feito o mate da manhã (é um hábito que aprendi com meu pai e levei adiante). Normalmente, é uma mateada de manhã e outra pela parte da tarde. A noite não é recomendável, a menos que se queira ir de hora em hora ao banheiro.

O cliente que tinha agendado uma visita logo de manhã já tinha telefonado confirmado-a, por isso, levei a cuia e a térmica para a sala de reuniões e fiquei esperando o sujeito.

Pontualmente, a secretária veio acompanhando o homem.

— O senhor quer um café — perguntou a moça.

— Não, se o engenheiro não se importar tomo um mate com ele — respondeu.

— Mas é claro, chimarrão é para ser compartilhado — respondi.

Falamos um pouco de tudo, do mormaço, política, da economia, resolvemos os problemas do país etc.

— Muito bom, mas em que posso ajudá-lo? — perguntei para o cliente.

— Tenho uma invenção que vai revolucionar o mundo! — afirmou ele com toda a convicção.

Confesso que não me surpreendi, pois de um certo modo todas as invenções revolucionam o mundo, e como já tinha visto tanta coisa....

— De que se trata? — perguntei.

— É um dispositivo que vai acoplado o motor do veículo e serve para economizar combustível — respondeu.

— Isso é muito bom, pois vem bem ao encontro da atual crise de combustíveis — comentei.

— A gente instala o dispositivo no carro e pode fazer a média, é certo, não dá outra: 30% a menos de gasolina e uns 25% a menos de álcool — concluiu o inventor.

— Funciona mesmo? — perguntei para ele um pouco cético. — Essas margens de economia são bem altas.

— Funciona assim mesmo — respondeu ele muito convicto.

— Então vamos fazer à patente — comentei, mas preciso que o senhor me forneça a descrição do dispositivo, desenhos, plantas etc. — Pode ser um desenho de apresentação, sem cotas, mas temos que detalhar o invento.

— A descrição do invento eu já lhe dei — respondeu.

— Não pode ser assim tão simples — comentei. Tem que detalhar mais.

— Ah! Então anota ai — retrucou.

Sabe quando a gente tem aquela sensação de que a coisa vai melar. Quando se come àquele xis que não devia. A voz interior que avisa: “não come isso”. A gente insiste e não dá outra: passa mal. Pois bem, quando o homem me disse isso, tive essa sensação.

— Não é melhor o senhor me passar esse descritivo por e-mail! — enfatizei.

— Não! — disse ele mais enfático ainda.

Resignado, peguei papel e caneta e fiquei esperando.

— Funciona assim: é um dispositivo que a gente acopla ao motor do veículo e serve para economizar combustível — disse o inventor.

Anotei isso, enchi um mate para mim e fiquei esperando pelo resto. O homem ficou me olhando e eu fiquei olhando para ele.

— O que mais? — perguntei.

— Com isso se tem uma economia de 25 a 30% de combustível, dependendo se for álcool ou gasolina — concluiu.

— Certo, isso o senhor já tinha dito — ponderei. E o que mais.

— Acho que o engenheiro não está entendendo — disse o inventor com um tom de ironia.

— Como assim? Trata-se de um economizador de combustível — retruquei.

— Isso mesmo — disse o cliente.

— Ta, mas como é que funciona esse economizador? — perguntei.

— Muito simples — respondeu o homem. Vai acoplado ao motor do carro. E ficou em silêncio.

Acomodei-me na cadeira, fiquei rabiscando a folha de papel com o olhar vazio. O silêncio chegava a ser constrangedor, pelo menos para mim, pois o inventor estava calmo, parecia iluminado.

Fiquei uns instantes sem saber o que fazer, mas a prática ensina certas coisas.

— O senhor tem que detalhar mais sua invenção — comentei — senão, não tenho como fazer o relatório.

Ele me olhou como se não estivesse acreditando no que estava ouvindo e lascou:

— Detalhar mais ainda? — perguntou ele como se eu tivesse dito uma heresia.

A prática foi para as cucuias. Eu não sabia se o cara era louco, se me levantava e ia embora, ou continuava o meu trabalho. Prevaleceu a última opção.

— Não! Seu... Perdoe-me, mas como é o seu nome mesmo? — perguntei meio que me desculpando.

— José!

— Seu José, com essas informações eu não posso fazer o relatório — argumentei.

— Mas o senhor não é engenheiro? — perguntou-me.

Senti que a coisa ia de mal a pior, mas me contive. Não ficaria adequado ter um piti.

— É que essas informações não são suficientes para eu compreender como funciona o seu dispositivo — argumentei.

— Ah! Mas eu não vou lhe explicar tudo de novo — disse o quase ex-cliente, já se levantando e dirigindo-se à porta. Foi um prazer conversar com o senhor — disse seu José se despedindo e retirando-se em seguida.

Tinha certeza de que ele ia sair por aí dizendo que eu era um engenheiro de m... que não entendia de nada.

O pior de tudo: esfriou o meu mate.

* * *

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Medo de Criança


Já falei um pouco da minha avó. Lembram, aquela viajada velhinha. Pois bem, ela era uma grande contadora de estórias.

Certa vez, fomos ao interior do estado para o batizado de uma prima nossa. Ficamos hospedados na chácara de um tio meu, onde a velha morava.

Depois do batizado e da festança do almoço, a velha reuniu a criançada e começou a contar uns causos. Era assombração para um lado, alma penada para o outro, enterro de dinheiro com fantasma cuidando e outras coisas. Ficamos ouvindo as estórias por uma boa parte da tarde.

Terminada a festa, os convidados foram embora e minha mãe teve a ideia de visitar uma tia dela que não via havia anos. Fui acompanhando ela. A visita se estendeu do resto da tarde até um pedaço da noite. Nesse meio tempo, caiu o maior caldo. Choveu, choveu e choveu. As estradas eram aquelas do interior, chão batido mesmo, e tudo virou um lamaçal.

Lá pelas 9 da noite, a mãe resolveu voltar à chácara do meu tio, não queria que ficasse muito tarde. Apesar da distância não ser muito grande, entre as duas casas, tínhamos que passar por uma parte da estrada que era meio deserta. Tinha uma grande subida, depois um descidão, uma curva lá embaixo e outra subida. Aí a estrada passava por um canavial, mais umas duas curvas e chegaríamos à casa do meu tio. A mãe estava com um corcel verde metálico, lembro até do ano: 1974. Na parte da descida foi fácil. Meio escorregávamos para um lado, para o outro, lama pra lá, lama pra cá, mas na descida todo o santo ajuda. No entanto, depois da descida tinha uma baixada e a estrada começava a subir. Aí não teve jeito. O carro tinha tração nas rodas da frente e não houve quem o fizesse subir. Como resultado disso, ficamos atolados lá embaixo, pois dar a volta e tentar subir pela outra parte da estrada também não deu certo.

A mãe desligou o carro para não ficar sem bateria, virou-se para mim e falou:

- Filho! Você segue a estrada e vai até a casa do tio e avisa o pessoal que estamos atolados. Pede que venham nos rebocar com o trator, pois não vamos sair desse atoleiro e não quero deixar o carro aqui.

- Pode deixar mãe que eu volto rapidinho.

O temporal tinha ido embora e deixara uma noite perfeita. A lua cheia iluminava as plantações e a brisa suave fazia as árvores balançarem as copas ritimadamente. Eu andava devagar para não escorregar na lama. Enquanto eu podia ver o carro estava tudo bem, mas depois da subida tinha uma curva e começava o canavial. A cana estava alta, de modo que eu não podia ver por cima dela. A luz cheia pintava tudo com seu brilho prateado. A única coisa que me restava era a estrada lamacenta e o balouçar da cana. Quando entrei na primeira curva dentro do canavial a coisa engrossou. As estórias da minha avó começaram e pular dentro da mente e os fantasmas se ensaiaram. Um calafrio correu a espinha de alto a baixo e o terror começou:

- Que...quem está aí? ? perguntei ao vento.

Ele me respondeu soprando as canas, que faziam um barulho aterrador.

- Fuuuuuuuuuu.

Do alto dos meus 12 anos reuni coragem e perguntei de novo:

- Quem está aí?

O vento respondeu com uma voz saída do inferno:

- Euuuuuuuuuuu.

Ao ouvir isso comecei a correr na lama. Escorreguei, caí, rolei pelo chão. Ao olhar à plantação vi diversas coisas se movendo na cana. Eram as almas penadas da minha avó que tinham vindo me assistir. Não tive dúvida, gritei que nem um louco.

- Socorro! Mãe! Me ajudem!

Já tinha perdido a direção da estrada, não sabia para onde ir. De repente vi um vulto branco que vinha em minha direção.

- Sai pra lá assombração! Não ouvi mais nada e fugi para dentro do canavial.

O vulto flutuou em minha direção. Pude vê-lo com o rabo dos olhos, enquanto corria dentro da plantação. Vocês já tentaram correr dentro de uma plantação de cana? Pois é, a gente se corta todo. Depois de alguns segundos correndo,que me pareceram horas, o canavial terminava em uma cerca de arame farpado junto a um perau. Virei-me com o coração a sair pela boca e percebi que não estava sozinho, a assombração tinha me seguido. Pensei: “vou virar alma penada também”. Não consegui me mover mais. O terror me tirara os movimentos. O fantasma chegou perto de mim, devagar, não tocava o chão, apenas flutuava esbranquiçado por sobre o solo. Preparei-me para morrer.

- Filho!

- Não me leve! ? gritei.

- Felippe! Sou eu! Tua mãe!!! - disse o fantasma com voz suave.

- Ah!?

- O que foi isso?

- Mãe!!

- Quem você achou que era?

Levantei-me e abracei-a chorando. Estava todo enlameado, cortado das folhas da cana, mas: salvo dos fantasmas.

De volta à estrada e no caminho para a casa do meu tio:

- Mãe!

- O que é!

- Me faz um favor!

- Fala.

- Não conta nada pra ninguém.

Ela cumpriu a promessa.

Fiquei sabendo depois que minha mãe tinha ido logo atrás de mim, pois não quis me deixar ir sozinho buscar ajuda. Pode um negócio desses?!

* * *

A Garrafa!

— Tenho uma invenção que vai revolucionar o mercado de bebidas gaseificadas — disse o cliente com muita animação do outro lado da linha.
Contive o meu entusiasmo por poder participar dessa revolução e modestamente perguntei:
— Do que se trata?
— Não posso lhe contar por telefone, pois é muito importante — disse enfaticamente o cliente.
Lasquei-me! Foi o que pensei. No entanto, já estava curioso para saber do que se tratava.
— O senhor vem até o meu escritório, ou eu vou até sua empresa? — perguntei.
— Você vem até aqui. Não posso arriscar que alguém veja o produto.
Endereço na mão e na hora marcada estava eu na empresa do Sr. Eurico. A secretária dele me conduziu até a sala de reuniões, onde eu seria apresentado à invenção.
— Aceita um café engenheiro?
— Pode ser.
Junto com o café veio o Sr. Eurico com uma caixa que largou sobre a mesa.
Apresentações feitas. Fomos logo tratando do que interessava.
— O que a grande maioria das pessoas faz quando abre uma garrafinha ou lata de refrigerante? — perguntou direto o homem.
— Bebe! — respondi de pronto. No entanto, pela expressão do Sr. Eurico, diria que não fui muito feliz na minha resposta.
— Isso vem num segundo momento — corrigiu-me.
Não disse mais nada.
— Pega um canudinho e coloca na garrafa ou na lata para poder beber o refri — concluiu ele.
Continuei sem dizer nada, mas certamente estava escrito na minha cara: “e daí”?
Eurico pegou a caixa e me apresentou a garrafa, objeto de sua invenção.
Era uma dessas garrafinhas comuns de 300 ml com refrigerante. Ele me entregou a garrafa para que eu desse uma analisada.
Olhei, olhei e olhei. A única coisa diferente que notei era a existência de um canudinho dentro da garrafa. Esse tipo de invenção desafia a nossa percepção e nos coloca no limite. É um momento delicado, pois uma palavra mal colocada pode demonstrar, efetivamente, que se está boiando.
Eurico me entregou um abridor, desses bem comuns, e pediu que abrisse a garrafa. Feito isso, tchan, tchan, tchan... O canudinho subiu até uma altura do gargalo, impulsionado pelo gás do refrigerante.
— É uma garrafa de refrigerante com um canudinho dentro? — perguntei.
— Exatamente isso engenheiro — respondeu o inventor.
Enquanto olhava para a invenção, o inventor continuou a explicação:
— A fábrica de refrigerante já envasa o líquido com o canudinho. Quando o usuário abre a garrafa o canudinho já sobe. É mais higiênico, prático e dispensa ter de beber no bico.
— E aí? É possível de se patentear — indagou o inventor.
Fiquei pensando: tem novidade, aplicação industrial e atividade inventiva. Aparentemente não me pareceu ter alguma proibição que impedisse o invento.
— Parece que não tem nada que inviabilize a invenção — respondi. Mas diga-me uma coisa — perguntei: como é colocado o canudinho dentro da garrafa?
Aí desandou a maionese.
— Muito simples — respondeu Eurico: manualmente.
— Como assim! Manualmente? — perguntei.
— É! Um funcionário coloca o canudinho dentro da garrafa e outro fecha-a com a tampa — respondeu.
Fiquei imaginando: centenas de funcionárias numa fábrica de refrigerante colocando canudinho dentro das garrafas e outras centenas fechando-as. As moças estavam acorrentadas pelos tornozelos, o carrasco com um chicote batendo nas suas costas e gritando: “meta o canudinho”, uma chicotada; “na boquinha da garrafa”: outra chicotada. Na outra linha de produção, as moças colocariam a tampinha cada uma com aquelas máquinas manuais do tempo de minha avó. O carrasco gritava: “mete no gargalo”, uma chicotada... Fui interrompido em meu devaneio pela pergunta do inventor.
— Revoluciona ou não a indústria de bebidas? — perguntou com ênfase.
— Não tem uma máquina para colocar os canudinhos dentro das garrafinhas? — perguntei.
— Não pensei nisso! — respondeu o inventor.
— Com certeza revoluciona! — respondi.
* * *